Este post do enólogo e professor
Umberto Trombelli (não um qualquer,
mas um que, por exemplo, trabalhou por 20 anos junto com Giacomo Tachis no
Sassicaia) deu muito o que falar na comunidade enológica italiana. O tema é
sempre polemico: vinho natural vs. vinho convencional. Já abordamos o assunto
(aqui e aqui), mas uma coisa é a minha ou a sua opinião, outra é a voz de um
respeitado profissional internacional. Portanto resolvi trazer aqui a discussão
traduzindo os pontos chaves e pra mim mais interessantes da publicação, dividindo
os argumentos em parágrafos (o post é longo), para avaliarmos melhor a questão juntos.
Lá vai:
Lá vai:
A ignorância faz mais danos do que leveduras
e sulfitos
Defeitos
Em meus 30 anos de
atividade de enólogo consegui aprofundar as técnicas de produção para vinhos de
uvas cultivadas de forma orgânica, biodinâmica ou convencional; em vinhos sem
sulfitos adicionados, sem leveduras selecionadas, em vinhos definidos
“industriais” e vinhos comercializados com sedimento em garrafa. Considero a
minha uma boa experiência, mas não me sinto nem satisfeito nem realizado, pelo
contrário, sou totalmente apaixonado por este trabalho que continuo a ler e
estudar porque tem muitas lacunas que a ciência ainda não sabe explicar nas
reações químicas da fermentação e conservação dos vinhos.
Dói-me ver que a enologia é criminalizada em geral por aqueles
que de enologia não sabem coisa nenhuma. Como enólogo fico feliz em ouvir
finalmente que entre os produtores de vinhos naturais os defeitos estão sendo
reconhecidos por aquilo que são: falhas. Os
defeitos não expressam um terroir, mas sim o degradam.
Muitos, no entanto, inclusive formadores de opinião
badalados, os exaltam e fazem do defeito um ponto de força para descobrir novas
estrelas em ascensão. O defeito é reconhecível em qualquer lugar, ou seja, além
de ser um caráter degradante é também
homologador. Nos anos foram
“endeusados” vinhos que um produtor engarrafava sem nenhum controle, assim que
você comprava um vinho que tinha feito uma maloláctica na garrafa ou uma
segunda fermentação por causa de um açúcar residual esquecido: ai de fazer
alguma crítica, senão você era considerado um ignorante e incivil. Paradoxo dos
paradoxos.
Leveduras
Embora eu concorde que defeito é defeito, não posso
compartilhar o conceito que um vinho para ser original e se reconhecer em um
terroir deva ser produzido sem uso de adjuvantes e/ou aditivos. Admito que em
vinhos produzidos em grandes quantidades exista um uso exagerado. Porém se
alguém tentasse aprofundar o Bê-a-Bá da biologia, da química e de todos os
fenômenos que estão por trás de um vinho, talvez estivesse mais disposto a
admitir que o motor biológico da vinificação tem que ser guiado pelo homem.
O uso de leveduras selecionadas, aquelas identificadas como
rápidas e seguras para ativar a fermentação, o uso de bactérias malolácticas
(talvez obtidas a partir do armazenamento na adega do ano anterior), o uso de
sulfitos de modo correto e não invasivo, não é ruim. A barrica geralmente tem um propósito: refinar, limpar e estabilizar
naturalmente o vinho; não moldá-lo sobre um gosto de madeira!
Estas são todas técnicas e ferramentas que o homem
desenvolveu ao longo dos séculos para melhorar e tornar desfrutável o vinho no
tempo. Não vejo nada de errado nisso,
pelo contrário, o considero a maneira ideal para valorizar um vinho em uma
área, desde que se trabalhe com a contribuição de viticultura cuidadosa e bem direcionada,
em uma ligação indissolúvel.
O desafio é se firmar num mercado mundial ligando o vinho ao
próprio território, junto com a própria história e patrimônio gastronômico e
cultural. Reduzir o problema pensando que as leveduras selecionadas são um fato
negativo é enganoso e contraproducente. Se por um lado é verdade que foram
selecionadas cepas de leveduras que acabam generalizando o bouquet de um vinho,
por outro lado também é verdade que existem muitas outras que são apenas bons
fermentadores, que não afetam as peculiaridades originais das uvas.
A escolha é ampla. Pensemos por um momento sobre o que seria
hoje a produção de Champagne (ou de
espumantes de qualquer área do mundo) se não houvesse leveduras selecionadas:
elas foram especificamente selecionadas para alcançar esse resultado enológico
e sem distorcer, pelo contrário, para valorizar
os produtos.
O que dizer de como se selecionam na vinícola as leveduras
chamadas “espontâneas” que fermentam os mostos de alguns produtores “naturais”:
são micro-organismos que vivem em quiescência em suas adegas (não em suas
vinhas!), despertam em contato com os mostos, se espalham ao longo da colheita
e depois retornam, alguns, novamente dormindo. Numa adega não há uma levedura única
que começa e termina sozinha um processo de fermentação, nem mesmo a
selecionada consegue.
Por acaso, quem afirma o contrário já fez pesquisas microbiológicas
para entender quais são os agentes de levedação deles? A eles eu posso dizer
que, se investigassem os mapas genéticos dessas cepas "nativas"
descobririam que essas leveduras também são comercializadas e vendidas como
bons fermentadores; encontrariam o comum Saccharomyces Cerevisiae, o micro-organismo
pertencente ao mundo vegetal, um fungo, o agente de fermentação. E também encontrariam
leveduras "não boas", "perigosas", não porque sejam
monstros, mas porque em certas condições ambientais elas preferem “comer”
outras coisas além de açúcares, e esse é um problema, um defeito 9 vezes em 10.
Eles descobririam simplesmente que o que eles dizem é sem fundamento.
Sulfitos
Eu provei a vinificar uvas e maturar vinhos sem uso de
sulfitos em várias safras. O que conclui é que dá para fazer, mas com resultado
qualitativo sem personalidade. Por efeito oxidativo os perfumes se perdem
tornando os vinhos menos significantes que os tradicionais. Hoje não existe uma
técnica que permite produzir vinhos de alto nível, especialmente de guarda, sem
uso deste complexo aditivo que atua como anti-séptico, conservante e
estabilizador. A que preço então? Porque se você realmente quiser evitar o uso,
terá que usar outros aditivos como taninos, taninos e taninos. E quanto aos
vinhos brancos sem o uso de sulfitos: socorro!
Verdade, os sulfitos adicionados são incômodos, tóxicos. Mas
se usados de maneira cautelosa não são tão danosos assim. Os limites
estabelecidos pela lei vão diminuindo, mas no momento não é possível abrir mão
deles. Aos contestadores eu gostaria de perguntar se compra e consuma
crustáceos, mostrada, molhos em geral, picles, comida em conserva, etc. Já se
perguntou quantos sulfitos existem na comida industrializada? Fácil demais
falar sem saber!
Por que devemos
sempre pensar que a pesquisa, o estudo e o fruto destes trabalhos são perigos,
especuladores terroristas que querem envenenar o próximo?
Eu sou um enólogo e tento valorizar ao máximo os vinhos de
meus clientes trabalhando nas peculiaridades das uvas que produzem em um
território específico. Eu uso poucos aditivos e só quando for necessário.
Apesar disso, não é possível encontrar uma identidade comum entre todos os meus
vinhos, e não para isso acho que sou um "alquimista": acho que sou
apenas um bom "piloto" que usa as técnicas que a ciência me dá para
desenvolver bem meu trabalho.
Vinhos simples
Não existem só vinhos famosos, há também os mais simples,
para o dia-a-dia. Os vinhos simples não são venenos! São vinhos obtidos a
partir de uva! Os mostos são vinificados com técnicas modernas e confiáveis
usando também aditivos alimentares autorizados. E dai? Deveríamos abandonar
este mercado? Deveríamos dizer a milhares de operadores de mudar de emprego só
porque alguém que não conhece e não se informa pensa que estamos fazendo algo
inaceitável? Que estão buscando um
negócio contra a natureza?
Absurdo! O vinho deve ser considerado em todas as suas
variantes qualitativas e comerciais. Se a tecnologia nos permite conter os custos
e serem competitivos nas faixas de preço baixo não há nada de errado com isso. Há
espaço para todos no mercado e nosso objetivo deve ser sempre melhorar. Fazer
uma guerra por um punhado de leveduras parece-me uma maneira de querer procurar
um bode expiatório que não responda a questões importantes.
Umberto Trombelli
Leia também:
As desculpas do vinho: 12 maneiras para dizer que é ruim
Vinho natural não existirá mais (e outras previsões da WineSpectator)
Vinho natural não existirá mais (e outras previsões da WineSpectator)
Excelente, Mario! A começar pelo título do artigo do Tonelli. Todos os seus destaques foram importantes, mas um deles me chama a atenção: "Os defeitos não expressam um terroir, mas sim o degradam".
ResponderExcluirGrande abraço,
Flavio
Grande Flavio! Pois é, muita gente quer passar os defeitos como um simbolo caraterístico da naturalidade e expressão do terroir, sendo que pelo contrário eles alteram a originalidade do vinho e seu vinculo territorial. E acabam paradoxalmente homologando o produto.
ExcluirA discussão é longa, eu não tomei nenhuma posição mas tampouco não sou contrário a nenhuma. Apenas gosto de vinho bom. O que me incomoda é quando a ideia se torna ideologia e as várias "facções" defendem um ou o outro lado como se defende partido politico ou time de futebol, independente de resultados.
Grande abraço, my friend!
Grande Mario! Concordo plenamente! Uma semana atrás a Wine Spectator perguntou a 6 profissionais do vinho o que esperavam para o mundo do vinho em 2018. Veja as perguntas e resposta de um dos profissionais. É um pouco extenso, mas interessante.
ExcluirWine Spectator: What's the biggest wine trend you predict for 2018? Or what would you most like to see?
Erik Segelbaum, wine director for Philadelphia-based Starr Restaurants, including Best of Award of Excellence winners Le Coucou in New York, Upland in Miami Beach and Le Diplomate in Washington, D.C.:
Answer: The trend I would love to just disappear is the whole idea of winemakers hiding behind flawed wine by calling it "natural". I would love to see natural winemaking to mean quality wine, not just to mean funk and stink. Because there are so many incredible natural wines, but now that it's become such a popular category I find that there are so many that are just flawed and hiding behind the veil of, "Oh well this is natural wine, so this is what it tastes like". We're just in this whole trend of, "Oh, we'll call it natural wine and let it taste like brett and mercaptans and V.A. and all sorts of other terrible flaws". I can name hundreds of natural wines that are fantastic, but I think more and more what's been coming out, that hipster trendiness of "totes nat wines" has just been a lot of flawed winemaking.
Abração,
Flavio
Perfeito, Flavio. Entendo que produzir vinho natural sem defeitos não é fácil, mas é certamente possível (conhecemos vários casos). Não ser capaz é outra coisa.
ExcluirGrande abraço, meu amigo!
Muito bom e esclarecedor, Mario! Parabéns.
ResponderExcluirMuito obrigado, Ana!
ExcluirPerfeito! É isso ai mesmo. Cada um com seu gosto e suas opiniões, mas uma parte consideravel dos seguidores dos vins natures tem uma petulância injustificada quanto ao tema. Em geral não conhece do trabalho prático de enologia. A indústria alimentar utilizada conservantes largamente e esse mímimi contra os sulfitos só prova o esnobismo e a tentativa de intelectualizar o vinho ao invés de focar no principal: o divertimento.
ResponderExcluirPerfeito! É isso ai mesmo. Cada um com seu gosto e suas opiniões, mas uma parte consideravel dos seguidores dos vins natures tem uma petulância injustificada quanto ao tema. Em geral não conhece do trabalho prático de enologia. A indústria alimentar utilizada conservantes largamente e esse mímimi contra os sulfitos só prova o esnobismo e a tentativa de intelectualizar o vinho ao invés de focar no principal: o divertimento.
ResponderExcluirLuiz, disse tudo!
ExcluirObrigado pela leitura e pelo seu comentário